2 de nov. de 2009

Informação sobre Água: lições aprendidas das fazendas mineiras do século XIX-XX

Um país como o Brasil, composto de imigrantes de todas as partes, que se juntaram aos indígenas que habitavam suas terras por mais de 500 anos, acumulou um rico acervo de conhecimentos tradicionais que mesclam saberes autóctones e saberes desenvolvidos em outras terras, como Europa, África e Ásia.

Entre lendas, conhecimentos sobre a meteorologia e um íntimo relacionamento com o ciclo da água, tais saberes reúnem também uma tradição de engenharia hidráulica e de aproveitamento de água muito peculiar: são as lições deixadas pelas fazendas de café e cana-de-açúcar do interior do país.

A arquitetura rural é um tema pouco explorado por arquitetos que ainda não se envolveram com o tema água como força motriz, como símbolo de vida, como elemento agregador, muito além do uso paisagístico convencional herdado do Renascimento europeu. Trata-se de funções mais básicas, talvez medievais ou ainda mais antigas.

Para melhor compreensão de alguns desses conhecimentos, é necessário entender o contexto em que se desenvolveram: as fazendas de café, localizadas entre colinas da região leste de Minas Gerais, são produto da divisão de grandes porções de terras herdadas por portugueses ilustres que se transladaram de Portugal para as novas terras: as capitanias hereditárias.

As capitanias foram desenvolvidas por seus donos na forma de vilas ou sesmarias sobre as quais cobravam impostos, exerciam justiça e pagavam impostos ao rei de Portugal. As sesmarias eram grandes fazendas que, depois de 1822 (Wikipédia) entraram para o mercado de terras tal qual é conhecido hoje.

Nos finais do século XIX, estimulada pela abolição da escravatura, a imigração italiana atinge seu ápice – entre 1880 e 1930. As sesmarias foram divididas e compradas por italianos nessa região do Estado de Minas Gerais. Estamos falando de fazendas de 50 a 200 alqueires, que correspondem a cerca de 160 hectares.

Isoladas em uma região de difícil acesso, as fazendas requeriam um manejo que hoje é sinônimo de sustentabilidade: um manejo delicado, para um sistema bastante vulnerável, mas ainda assim forte e extremamente produtivo. Consistiam em sistemas fechados, como ilhas de desenvolvimento em uma grande área de ecossistema ainda virgem: a Mata Atlântica.

Considerando que tudo isso se deu antes da revolução industrial brasileira, é compreensível que igualmente as pequenas aglomerações não contavam com um comércio vibrante, com produtos manufaturados. As fazendas forneciam importantes produtos às vilas, tais como alimentos diversos, incluindo o café, o açúcar e bebidas alcoólicas como a cachaça.

Nesse contexto, o aproveitamento da água era um fator fundamental para as verdadeiras agroindústrias em que se converteram as fazendas daquela época, principalmente as italianas que são o foco desta narrativa. Alguns usos da água para a sustentabilidade das fazendas eram: o uso prioritário na casa, o reuso na área circunvizinha à casa; o uso na produção industrial de alimentos, o uso para geração de energia e o uso religioso.

a) uso prioritário na casa

A água pura nem sempre era encontrada perto da casa da fazenda. Era, portanto, necessária toda uma engenharia de agrimensura para trazê-la das fontes naturais, por uma distância de aproximadamente um quilômetro até a sede da fazenda. Isto se dava por meio de pequenos canais construídos ao longo de curvas de nível, contornando as montanhas e respeitando o tipo de solo.

Eram canais de cerca de 60 cm de largura e 80 cm de profundidade, que deveriam ser monitorados pelos filhos do dono, periodicamente, para evitar que animais mortos ou galhos de árvores bloqueassem ou contaminassem o precioso líquido.

O cuidado com a água da casa era tão grande que se plantavam algumas espécies de vegetação arbustivas ao longo do canal para manter a água fresca e protegida de pequenos animais que não teriam espaço para atravessar e banhar-se, por exemplo.

No ponto de derivação da água para a casa se fazia uma proteção em grade, que deveria ser frequentemente inspecionada a fim de limpar as folhas secas e outros detritos que se acumulavam naturalmente, como uma espécie de filtragem.

O armazenamento era feito em caixas de tijolos e cimento, sendo a tubulação de bambu, substituída a partir dos anos 1950 por tubos de ferro. A caixa de água foi, nessa época, construída sobre o banheiro.

O aquecimento também foi planejado, com serpentinas que passavam pelo fogão de lenha, aproveitando o calor produzido para cozinhar os alimentos. Assim, era possível misturar as águas frias e quentes de acordo com o gosto do habitante da casa.

A água também servia à cozinha e às instalações sanitárias, mas com diferentes destinos, respectivamente a área circunvizinha à casa e o córrego que passava por trás da habitação.

b) reúso na área circunvizinha à casa

A água que se usava na cozinha e para o banho era recolhida fora da casa por pequenos canais, não muito profundos e abertos, por onde seguiam ao longo dos pomares, irrigando-os por infiltração, até o córrego mais próximo.

O único sabão usado, feito em casa, não possuía toxinas fortes, como soda cáustica, pois era feito com os restos de animais que se abatiam para consumo doméstico e cinzas resultantes da combustão da lenha no fogão. Não eram poucas as vezes que se viam as galinhas, patos e outras aves bebendo a água desses pequenos canais.

A horta usava a água captada do córrego, antes da casa. Eram feitos poços nos quatro cantos da área cultivada, que se conectavam entre si e mantinham um ambiente úmido e de fácil manutenção, visto que com ferramentas simples era possível aspergir água sobre os vegetais.

c) uso na produção industrial de alimentos

A localização do engenho de cana-de-açúcar obedecia a algumas regras, sendo a mais importante a proximidade do canal que abastece a casa. Era necessário que a água chegasse à roda d´água por cima para movê-la. Era feita uma derivação do canal, antes que chegasse à casa, para a área que se pode caracterizar como “área industrial” da fazenda.

A roda d´água, além de mover o engenho, era uma atração turística para os visitantes. E acabava criando um ambiente úmido muito apreciado por samambaias e outras espécies vegetais ornamentais.

A represa desta fazenda foi construída em uma depressão do terreno, pouco depois de uma ou mais fontes naturais. A configuração da micro-bacia era tal que a água da chuva era recolhida com abundância e ficava aí armazenada por muitas semanas, sempre alimentada pelas fontes naturais.

Era possível pescar nessa represa, mas não era permitido nadar, talvez porque era uma represa pequena, mas profunda e perigosa para as crianças. Como tudo se aproveita em uma fazenda, as árvores que protegiam a água da evaporação deviam ser frutíferas para a “pequena fábrica” de doces especiais, além de prover alimento para os peixes.

A partir da represa, a água tinha diferentes usos: o moinho de fubá, o monjolo onde se moíam o milho e outros produtos para consumo doméstico e dos animais; a área do curral e, mais tarde, a geração de energia.

Em outras palavras, a água na fazenda era a força motriz de todos os aparatos necessários para a sobrevivência da família, tanto sua alimentação como sua capacidade de aquisição de novos produtos, não existentes na fazenda.

Depois de passar pelos equipamentos de produção industrial, a água é novamente aproveitada, uma segunda ou terceira vez, na irrigação da cultura de cana-de-açúcar (o cultivo especial para os donos da fazenda) ou o milho, antes de voltar para seu ciclo natural, no córrego.


d) uso para geração de energia

A partir dos anos 50, da represa também se derivava a água para geração de energia, necessária para o rádio e a iluminação em geral. Somente usada à noite, para não competir com o moinho de fubá, o gerador de eletricidade passa a ser um importante componente do conforto doméstico, mas não da produção industrial.

e) uso religioso

Toda fazenda italiana tinha um cruzeiro: no alto de um morro, para proteção de toda a área circunvizinha, uma grande cruz que se adornava uma vez por ano, na festa da Santa Cruz. Era comum, depois do plantio do milho, quando se necessitava chuva para fazer brotar as sementes, que o dono da fazendo reunisse todos os filhos e ajudantes para buscar água e levá-la até o cruzeiro, regando seu pé com o líquido precioso e orando para que as chuvas caíssem sobre o cultivo recém plantado.

Em geral – não sabem explicar os descendentes da família – em um ou dois dias, não mais, chovia.