É oportuno refletir sobre um assunto que está sendo discutido no mundo todo. Hoje, no campo do manejo integrado dos recursos hídricos ou da gestão da água, a Bacia Hidrográfica é considerada um organismo único, uma unidade de planejamento. O homem ocupa as bacias, com lavouras, nas áreas rurais.
Podemos visualizar essa ocupação da seguinte forma: esta ação do homem nas bacias corresponde à sobreposição, ao ambiente natural, de uma camada de ambiente artificial/cultivado (a lavoura) criada pelo homem; uma película feita pelo homem, sobre a base natural que a Terra oferece. Quanto mais a camada do ambiente artificial for homogênea, densa e uniforme, menos do ambiente natural é visto e resta como referência para aqueles que vivem no novo ambiente, modificado.
Algumas vezes, as lavouras costumam cobrir totalmente o ambiente natural, substituindo, inclusive, áreas de nascentes, de recarga e matas ciliares. A relação de exploração do solo é tão forte e frenética que o ambiente natural é coberto por essa película de vegetação uniforme (monocultura) que, com o tempo, leva à drenagem ou ao rebaixamento do lençol freático, sem as recargas necessárias.
Outras vezes, a película artificial da lavoura, ao cobrir uma bacia hidrográfica, deixa lacunas através das quais se pode ver o ambiente natural. É exatamente nessa paisagem, da lavoura somada a áreas naturais, que reside o equilíbrio que muitos denominam desenvolvimento sustentável. Está aí o “ponto” em que a lavoura pode salvar a água.
A relação do homem com o rio (rio acima: mananciais, nascentes; rio abaixo: foz e área de recarga) precisa sair dos livros de geografia e permitir que o produtor rural, baseado em seu conhecimento prático, contribua com a natureza para que ela possa ser sua parceira, produzindo a água de que necessita, reciclando a água em seu ciclo natural, reabastecendo o lençol freático, deixando água para o vizinho rio abaixo, etc.
Assim, a lavoura salva a água enquanto tira proveito dela para o aumento e prolongamento de sua produção. Essa é a lógica das bacias hidrográficas, do cultivo em micro-bacia, mas também do manejo integrado das bacias hidrográficas, especialmente se considerarmos a inter-relação entre as áreas de lavoura e as cidades localizadas rio abaixo, que captam água para o abastecimento humano. Em outras palavras, a lavoura salva não apenas a água, mas influi na qualidade de vida das pessoas rio abaixo, produzindo seu alimento e preservando a qualidade d’água que terão para beber.
Há uma outra maneira de ver esse tema: a paisagem natural normalmente é bela. A criação, para muitos de origem divina, tem poesia, naturalidade, força vital por si só; entretanto, quando é substituída completamente pelo homem por uma paisagem moldada à mão, máquinas e adubo, eliminamos qualquer manifestação da natureza original, sendo quase como uma negação, quase como uma ação de extermínio do “dedo de Deus” sobre a Terra.
Ao fazer isso, o homem elimina também qualquer possibilidade de manifestação do belo, da biodiversidade, da Natureza enquanto obra de arte: árvores incrivelmente belas, arranjos florais primaveris que nenhuma floricultura é capaz de fazer, ruídos de água inigualáveis, micro-clima agradável, gerador de brisas e irradiador de vida... A tecnologia substitui, cobre e sufoca a Natureza. A criação do homem substitui, cobre e sufoca a criação divina dominando-a até o último suspiro.
Então, evocando a imagem anterior do equilíbrio, a convivência de lavouras com certas áreas naturais protegidas, também permite que a propriedade e a paisagem rural propiciem às pessoas que ali vivem, beleza, inspiração e alegria pelo fato de poder desfrutar de espaços agradáveis, micro-climas saudáveis, ao mesmo tempo em que se ganha dinheiro com a produção. Em muitos casos podem chegar a ser pontos de atração ecoturística, ou de um programa de turismo rural, gerando ainda mais recursos.
A proposta do desenvolvimento sustentável (de aceitar um lucro menor do que 100%, mas permitir a manifestação da natureza na paisagem humanizada) permite que a relação seja mais eqüitativa, concomitante e equilibrada. O esgotamento dos recursos naturais não é total e a aridez das lavouras também não. Há uma diversidade na paisagem que significa muito mais do que apenas convivência: significa também subsistência, sustentabilidade, longevidade, satisfação de múltiplos desejos e sonhos, permissão para a vida acontecer em mais formas.
A lavoura depende da água. A água pode salvar a lavoura. Entretanto, a lavoura também pode salvar a água. É através do resgate de fórmulas tradicionais de tratar a terra, adicionando a elas um pouco da lógica humana e introduzindo técnicas de manejo da natureza, no lugar de seu controle, que se poderá aproveitar melhor da força da natureza em favor da vida, da produção e do desenvolvimento econômico.
Traduzindo isso, na lavoura, a água pode ser “salva”, por exemplo, através da colheita de água de chuva, fonte hídrica natural direcionada para uma bacia qualquer. Proteger essa chuva contra a evaporação rápida é um cuidado que deve ser proporcional à escassez da água na bacia. Armazenar e dificultar as enxurradas de água, tentando fazer com que ela permaneça o maior tempo possível na bacia é outra estratégia que deve ser vista como econômica, na medida em que a água, enquanto circula pelo território da bacia gera energia, produz alimentos, move máquinas, permite trabalho, etc. Finalmente, manter essa água limpa, é uma obrigação de todos.
Cada uma dessas ações pode ser realizada de diversas maneiras. Cada dia surge mais um CD-ROM, um projeto, ou um livro explicando uma dessas formas. Por exemplo, a coleta de água de chuva na lavoura, pode ser feita com pequenas represas nos talvegues/encostas das montanhas, permitindo a retenção, infiltração e recriação de micro-climas. Também pode ser feita mediante poços que têm, ao seu redor, uma superfície ampla de implúvio, ou seja, de convergência da água de chuva para o poço.
Ainda pode ser feita através da manutenção de florestas nas áreas de recarga, no alto dos morros ou em áreas de solo poroso, pantanoso, que permitem a infiltração natural das águas. Capta-se a água de chuva também através de definição de diversas curvas de nível no terreno, seja montanhoso ou plano, seja com montes de terra, seja com pedras, degraus ou de outro tipo de barreira, que mantém vários pequenos lagos lineares, que não apenas armazenarão água durante as chuvas, mas também quebrarão a velocidade das enxurradas que provocam erosões.
Pode-se, também, captar águas de chuva através de superfícies impermeáveis, como telhados, pátios cimentados, estradas, etc, armazenando-as em depressões ou poços ou tanques laterais ou centrais, dependendo da inclinação dessas superfícies. A construção de barragens subterrâneas, ou de pequenas represas de pedra nos talvegues, imita a natureza quando coloca, ao longo de córregos, pedras que diminuem a velocidade, que depuram e permite a decantação, retendo matéria orgânica no solo, permitindo o crescimento da vida, no espaço que chamamos mata linear. Enfim, para cada uma das ações mencionadas, existe uma série de técnicas e outras estão sendo criadas, de acordo com as características de cada região e com o grau de avanço das tecnologias disponíveis.
Muitas dessas técnicas já existiam desde as civilizações Incas no Peru, desde a Grécia, cinco séculos antes de Cristo... Na medida em que o homem foi revestindo a superfície natural do planeta com uma superfície artificial, muitas dessas técnicas foram esquecidas, desprezadas ou ignoradas por serem ultrapassadas, obsoletas, inadequadas para situações nas quais se precisava vender novos equipamentos e novas tecnologias. Hoje, muitas delas, se reúnem na forma de técnicas de Permacultura, Agroecologia, Agroflorestas, Agrosilvicultura, Fazenda Orgânica, enfim, nomes os mais variados possíveis, que, tentam resgatar certas técnicas tradicionais, adicionando lógica e algum aperfeiçoamento ao processo, a partir dos conhecimentos já acumulados pela humanidade.
Mas a essência da lida com a água em cada “unidade de planejamento” é o respeito por seu ciclo, o cuidado com sua presença constante, o desejo de sua convivência com o que o homem cria. Isso é mais um pouco do que apenas manejo integrado de recursos hídricos: é gente cuidando d’água da melhor maneira possível. Mais do que cumprir o Código Florestal, o cuidado com a água nos faz cumprir a Lei e ir além dela, tirando ainda maior proveito do que um dia foi imposto como obrigação.
Isso por causa dos tantos que fizeram coisas erradas, erradicando as possibilidades de sobrevivência d’água em propriedades rurais, causando desertificação, salinização do solo etc. Por isso foram feitas as leis. Não por causa dos que amam e cuidam d’água, mas pelos que não souberam cuidar dela.
Fazer isso numa pequena área, em apenas uma cidade, uma fazenda, é muito mais fácil. O trabalho com micro-bacias tem um potencial enorme na medida em que é facilmente visualizado e rapidamente alcança resultados visíveis na quantidade e na qualidade da água que chega ao rio principal. Essas ações estão ao alcance do cidadão.
Entretanto, fazer isso em grandes áreas, em Estados, em grandes bacias, exige do cidadão a confiança em seus representantes que articularão essas ações, através de leis, de programas e de projetos. E cada cidadão espera dos governos, a ética e o compromisso para com os resultados. A água é o único alvo de nossas atenções, cidadãs, governamentais, técnicas, empíricas... Sua cor, sua quantidade e a vida que nela reside são os indicadores de que a nossa saúde-vida está preservada, garantida, mantida.
Cuidar de uma bacia hidrográfica significa aumentar a nossa perspectiva de vida sobre a face de um planeta saudável. Por isso, a sociedade deve continuar pensando globalmente, mas agindo, localmente, na sua própria micro-bacia.
Fonte: http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=405